Mar 29, 2009

Mies van der Rohe - Farnsworth House, Plano, Illinois, USA.

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Decidi então relatar três horas alucinantes, mais exactamente três horas e um quarto. Aqui fica então a história de como fotografei um dos grandes ícones da arquitectura do séc. XX:

Ao fim de mais de quinze dias de estadia em Chicago, seguida de uma viagem a Nova Iorque e Canadá para fotografar outras obras do Mies, foi-me finalmente concedida autorização para fotografar a dita maravilha (é mesmo uma maravilha, não estou a ser irónico!). Lá fiquei todo eufórico, lá voltei `a cidade dos Blues, sem adivinhar que o pior estava para vir… Passo a explicar: antes de poder pôr um pé que fosse do meu tripé no soalho da referida maravilha, tinha que possuir um seguro no valor de um milhão (!) de dólares. Não fosse o diabo tece-las e eu fazer algum risquito no dito soalho, ou, pior, dar-me algum curto-circuito cerebral e passar-me dos carretos, quem sabe pegar fogo aquilo tudo, num gesto de raiva vingativa pelo tempo de espera e as inúmeras burocracias vencidas. Bem nada a fazer, há que ter o dito seguro, há que o pagar! “Americanices”, pensarão alguns de vós e pensei eu então. Mas não só o referido seguro custava um grandessíssimo balúrdio (desculpem o termo tão vernáculo, mas garanto-vos que na altura vieram-me palavras bem piores `a mente), como ninguém mo queria fazer! É que, embora com estadia legal, eu não tinha residência fixa nos EUA! Cheguei a andar por Chicago a correr as agências de seguros de porta em porta. Tanto fazia ir `as de luxo nos arranha-céus, como `as espeluncas de ruas menos recomendáveis. Que tivesse paciência, era uma pena, não havia nada a fazer… Estes os simpáticos, que outros me empurravam logo para o olho da rua. Valeu-me a calma do meu filho Jorge que me acompanhava e assistia, que lá me segurava os ânimos e me dava apoio moral. Já não sei bem como, mas acabou por aparecer uma alma caridosa, uma senhora muito simpática e com voz humana cujo nome já nem recordo (nunca a cheguei a ver, só falámos por telefone), que me safou da enrascada. Como? Muito simples: deu a morada de um fotógrafo de Chicago (que também nunca cheguei a conhecer) e lá me arranjou um seguro.



Lá amanheceu então o grande dia e lá seguimos para Plano, que é uma territa a cerca de oitenta quilómetros de Chicago. Uma daquelas que a gente vê nos filmes, uma main street e pouco mais. Pelo menos é essa a memória com que fiquei na altura. Como fizemos 16.000 km de carro nessa viagem pelos EUA e Canadá, posso já baralhar as coisas um pouco... (Por curiosidade: no total, Europa e América, fiz 27.000 km para fotografar as obras do Mies. Claro que não estou a incluir os que fiz de avião, apenas os de carro!). Mas Plano não é ainda Fox River, e não é fácil dar com a Farnsworth House. Bem protegida dos olhares curiosos, não se vê sequer da estrada.




Chegámos cedo. Eu, ingenuamente, a pensar que ia ter um dia de trabalho calmo e ponderado, a reflectir sobre as lindas imagens que ia produzir para deleite de futuros leitores, a pensar cá para os meus botões que o tema e a situação requeriam concentração redobrada. Afinal se temos o privilégio de fotografar tal obra-prima, temos também a responsabilidade e o dever de o fazer bem feito! Há que pensar bem antes de fazer o click! Ilusões…

Novas negociações: há que pagar um x para começar a fotografar. Outro balurdiozinho, outra “americanice” (uns meses antes, para estar a fotografar calmamente a Tugendhat Haus em Brno, durante várias horas, custou-me mais ou menos o que me pediam aqui por cada hora…). Mal sonhava eu que dos males, esse era o menor: é que me caiu literalmente a queixada quando fui informado que tinha no máximo três horas para concluir o trabalho. “Três horas? Mas ainda é de manhã cedo!...”. Fui então informado que a proprietária se encontrava na casa a passar férias com as crianças, que iam para a piscina, mas depois exigia o seu sossego e privacidade. Então e as três semanas de burocracias, as negociações, os telefonemas, os faxes, o seguro, os custos, as estadias, os nervos? “Eu pago mais horas!”.

” Não, e não, e não! Nada a fazer!”. E eu a olhar para os postais que tinham á venda por uns cêntimos a pensar cá para mim que cada hora que eu não podia fotografar equivalia a muitos, mas muitos, postais vendidos… Vá a gente percebe-los...




Então e as fotografias espectaculares que eu tinha para fazer? “Três horas? Eu nem sequer conheço o sítio. É a primeira vez que aqui venho!...”.

Reunião de urgência com o meu filho: “como nos desenrascamos desta? Não vamos sair daqui de mãos a abanar... Toca a reduzir o equipamento ao mínimo indispensável, o resto fica no carro. Esquece a mala da 9x12 e respectivas objectivas, esquece os filtros e o colormeter, o spotmeter também, esquece isto, deixa aquilo...” (Dos equipamentos de iluminação já tínhamos desistido em casa…). Ficámos reduzidos a uma Horseman 6x12 com uma única objectiva 75mm (equivalente a uma 24mm em pequeno formato; neste tipo de equipamentos não há objectivas zoom, as distâncias focais são fixas!), um fotómetro de luz incidente, um molho de rolos 120, o despolido para enquadrar com exactidão e a necessária lupa e pano preto (pressa sim, mas mais valem poucas imagens boas do que muitas que não prestam!), o cabo disparador e o tripé. E muita “fé em Deus, seja o que ele quiser”.








Para quem não sabe bem do que falo, permitam-me um resumido esclarecimento: falo de uma câmara fotográfica analógica que produz seis (!) fotogramas por rolo, sem qualquer tipo de automatismo, sem motor, sem fotómetro incorporado sequer! Obviamente instalada num tripé e de focagem manual, em que um diafragma aceitável de trabalho nunca é inferior a 16, melhor é mesmo 22! Nesta câmara eu instalo um vidro despolido (perdoem-me os entendidos se o termo não está correcto: eu aprendi a fotografar na Alemanha e chamo-lhe Mattscheibe…) no plano do filme, para controlar com exactidão a imagem no seu enquadramento, nitidez, quantidade de descentramento da objectiva necessário para manter a perspectiva correcta, etc. Isto depois de ter nivelado com todo o cuidado e precisão a máquina (sim, eu gosto de lhe chamar assim! E se querem saber mais, até lhes dou nomes próprios: esta em questão é a Horsy, outra é a Cory, outra a Hassy, etc. Cada maluco com a sua…). Como não há um sistema de prisma e espelho, é forçoso, pelas leis da óptica, que essa imagem seja vista de pés para o ar! Diafragmando para controlar a profundidade de campo, a imagem torna-se extremamente escura, especialmente em interiores. Mesmo em exteriores é quase impossível evitar o uso do tal paninho preto, ridículo: é que sem ele a imagem quase não se vê, perde contraste. Quando está tudo pronto, há que desmontar o referido vidrinho, fechar e armar o obturador, escolher a velocidade de obturação e o diafragma, instalar o carregador com filme, tirar o dark slide (a chapinha de metal que não deixa o rolo apanhar luz, não me levem a mal, mas não sei o termo português, lá onde aprendi diz-se schieber), e então sim, pegar no disparador e fazer o click. Se tudo tiver sido feito como deve ser, sem erros nem distracções, a imagem deverá estar óptima. Pelo menos se a luz for bonita… Mas não se assustem: é mais complicado de descrever do que fazer, especialmente quando já se tem muitos milhares de quilómetros e fotografias de rodagem…









Mas voltemos a Fox River. Lá começámos a fotografar para darmos com outros problemas: não estávamos autorizados a tocar em nada, não podíamos mudar o lugar das coisas. O encarregado que nos acompanhava, e que não nos largou um minuto, limitou-se a retirar algumas fotografias de natureza privada de cima de uma ou outra mesa (recordo-me de ver a princesa Diana numa delas, com o seu lindo sorriso). O que vale é que estava tudo bem arrumadinho, não é como em minha casa… E felicidade das felicidades, não tínhamos que limpar nada! (Mas essa das limpezas fica para outra vez…). O resto é simples: fui dando a volta á casa, escolhendo o que me pareceram os melhores ângulos e olhando apreensivamente para o relógio, a ver os minutos voarem, tentando desesperadamente não fazer nenhuma burricada (sim, também as faço!). Ah bem, tão simples também não foi. Já me esquecia do ar condicionado! Se ele trabalhava, as cortinas não paravam de mexer, o que não dava jeito nenhum tomando em conta as exposições longas de que necessitava. Se era desligado, ficavam as vidraças cheias de condensação. Que escolha o diabo! Vá lá que o encarregado se esforçou e lá ia ligando e desligando, enquanto os minutos teimavam em correr cada vez mais rápido (Resta-me o consolo de pensar que tal problema não devia ter a Dra. Edith Farnsworth sofrido: creio que nos tempos dela a casa ainda não tinha ar condicionado instalado. Coitada, deve ter cozido com aquele ar quente e húmido do rio…).







Quando chegámos ao fim das três horas estava relativamente satisfeito. Se tudo tivesse corrido bem (não se esqueçam que falamos de fotografia analógica, em diapositivo…), teria certamente imagens suficientes para descrever bem o interior da casa. Há sempre uma ou outra que se podia ter feito também, há sempre uma ou outra em que se optou mal, em vez de assim devia ter sido assado. Bolas, tem que se saber ser selectivo! “Está feito! Passemos aos exteriores!”. Ah, ingenuidade portuguesa, quanto nos custas? …

“Exteriores?”, perguntou o encarregado atónito. “Você agora vai mas é embora. Acabaram as três horas!”.

E eu, apesar do calor sufocante, a sentir o sangue gelar: “Mas isso não era só para os interiores, por causa da senhora???”.

Bem, não adianta descrever-vos a sensação de terror que nos subiu pela espinha acima, nem uma única imagem do exterior depois de tanta chatice? Argumento para aqui, argumento para ali, ele então, magnânimo e irrefutável, sentencia: “Ok, dou-lhe mais um quarto de hora para fazer os exteriores!!!”.

E assim foi! E o que há, está `a vista: são estas as doze fotografias que fiz da Farnsworth House em três horas e um quarto… (Há na realidade mais uma da cozinha, com a cortina fechada, que não me agrada tanto. Como tal, não conta…). Outras melhores existirão certamente, mas sei que não tenho de me envergonhar destas. Foram as melhores que consegui nas circunstâncias proporcionadas.


E como não deve haver história sem moral, aqui vos deixo esta pergunta para reflectirem: quanto na vossa opinião valem, ou deveriam valer, estas fotografias?

Arneiro dos Marinheiros, Agosto de 2007




English speaking people, who don't understand portuguese, please excuse me, but this time the text is in my mother language...

At first I thought about translating it, but I quickly realized that it would be a rather difficult task for me.

So I opted to show the original text, written originaly for a portuguese architectural magazine. It describes, informally, the difficulties I went through until I was allowed to photograph the Farnsworth House. And the difficulties I experienced by photographing it too.

"Three hours and a quarter!" is the title I have chosen for this text.

I will briefly explain: three hours was the time that I was allowed to photograph this icon of Modern Architecture.

At first I thought that limit would only refer for interior photography. It was already very short, but using only one camera and one lens, keeping things simple and "relaxed", I knew that I could manage it (and I did!).

So, when the three hours were over, I just asked if I could go outside to make the exterior shots, just to hear that I had to leave, as the three hours were meant to be the total time!

I had made an insurance in the value of one million dollars, stayed about three weeks in Chicago taking care of permissions, insurance and so on, and I was paying a lot of money for each hour I was shooting!!!

And I was photographing for a book with international distribution...

No, and no, they wouldn't allow me more time!

Then, after some discussion and argumenting, I was finally given a quarter of an hour extra for the exterior shots! Yes, you read right: fifteen minutes!

Somehow I managed to make the three images you see above and I had to leave.

While leaving, I was thinking about the postcards they were selling at the office for 60 cents...

All the photographs on this post were made using a Horseman SW 612 Pro, equiped with a Rodenstock Grandagon 75mm, on Ektachrome film. Lightmeter from Gossen. Tripod from Gitzo.



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